As
cidades brasileiras são
feias, cinzas, sujas,
congestionadas,
poluídas, violentas e
desiguais. Não obstante
essa realidade quase
acachapante, muitos
insistem no tema das
cidades “inteligentes”.
Discordo. Por que
valorizar apenas um
dentre os vários
atributos desejáveis de
uma cidade? A cidade tem
que ser inteligente ou
deve dispor de serviços
que habilitem a
inteligência de seus
habitantes? Qual é o fim
último das intervenções
no espaço urbano – as
infraestruturas, os
serviços, as empresas,
os governos ou os
habitantes?
A cidadania no Brasil
evolui de forma lenta,
gradual e insegura.
Autores clássicos como
Wanderley Guilherme dos
Santos e José Murilo de
Carvalho mostraram com
detalhes as fases,
evoluções e involuções,
tensões e contradições
desse conceito e prática
no país. Ainda que a
Constituição de 1988
tenha sido denominada de
“Constituição Cidadã”
por Ulysses Guimarães
(como meu ídolo faz
falta!), a prática
política é imperfeita e
ecoa a cidadania
incompleta ou tutelada
de outros momentos.
O
lugar por excelência de
exercício da cidadania é
a cidade. Se a cidadania
é incompleta, as cidades
também o serão.
Se a desigualdade é
perpetuada por vários
mecanismos de poder, as
cidades seguirão
desiguais. As
desigualdades nas
cidades são palpáveis,
concretas. Iluminação
pública, polícia nas
ruas, transporte
eficiente, qualidade do
asfalto, oferta de
saneamento, tamanho e
frequência das áreas
verdes, equipamentos
culturais, qualidade das
escolas e postos de
saúde – tudo isso é
diferenciado dentro das
cidades, comprovando o
enraizamento das
diferenças e as
imperfeições da
cidadania.
Alguns, pasmem,
(re)descobriram a
desigualdade durante a
pandemia. Nada expressa
melhor a cidadania
imperfeita do que
variados representantes
da elite “descobrirem”
os “invisíveis” (Maria
Antonieta não está só?).
Antes tarde do que
nunca, dirão os
otimistas, mas penso
que, não obstante as
manifestações de que
“agora vai ser
diferente”, a inércia e
a dependência de
trajetória dos
mecanismos do poder
profundo desaconselham
otimismo com a redução
das desigualdades.
Sabemos da História que
a diminuição das
desigualdades acompanhou
e refletiu movimentos
políticos organizados de
contestação do status
quo, elites que se
conscientizaram da
necessidade de
concessões
significativas,
ameaças externas (como
guerras) e algum grau de
homogeneidade da
população (é mais fácil
ter políticas universais
quando a maioria se
percebe como igual aos
outros).
Notem que insurreições,
revoltas, violência nas
ruas não são fenômenos
raros nos processos
políticos que resultaram
em atenuação das
desigualdades.
Importante ainda frisar
que as políticas de
governo foram decisivas
em todos os casos, ainda
que de maneiras
diferentes.
Nesse contexto, o lema
da “inteligência” das
cidades (termo que
reifica relações
sociais) é inapropriado,
fora do lugar
– mesmo estando no seu
tempo.
Não podemos
desconsiderar que as
cidades brasileiras
vivem dramas dos séculos
XIX, XX e XXI, num
autêntico “tudo ao mesmo
tempo agora”, e assumir
que uma muito restrita
visão de inteligência
seja “a” agenda urbana.
Ela é parte de uma
agenda mais ampla.
Proponho que a
orientação geral, a
ambição que deveríamos
abraçar seria reformar
as cidades brasileiras
com
o
objetivo de atuar nas
questões em aberto do
passado – como
saneamento, habitação e
transportes –,
mas
também nos temas do
presente, como (vá lá!)
inteligência,
sustentabilidade (com
foco importante em áreas
verdes acessíveis a
todos) e cultura. Ou
seja, cidades boas para
todos e inteligentes
também.
Dentro dessa agenda, um
critério importante
deveria ser a beleza.
Nossas cidades são muito
feias, por várias
razões. A arquitetura do
Rio de Janeiro, por
exemplo, insiste em
desafazer o presente da
natureza, com raras e
mui honrosas exceções. A
feiura se liga à
despadronização, ao caos
visual, que pode ter seu
charme para alguns, mas
gera
estresse
para os moradores e
outras
disfuncionalidades.
Promover arquiteturas
públicas e privadas que
valorizem a beleza pode
ser um caminho para
recuperação de
autoestima e, portanto,
da capacidade dos
habitantes terem
disposição para lutar
por sua cidade. Talvez
fosse melhor falar de
“belezas”,
porque poderia haver
inclusive
certa
descentralização de
belezas, gerando
diferentes identidades
ao longo de diferentes
espaços, sobretudo nas
cidades grandes.
Dentro do quesito
beleza, a criação de
muitas e amplas áreas
verdes é elemento
central. Preocupada com
a situação da classe
trabalhadora, a rainha
Vitória advogou e
promoveu a criação de
parques nas cidades
inglesas. Os
trabalhadores seguiram
vivendo em casas
pequenas e humildes e
trabalhando em fábricas
hostis e poluídas, mas
passaram a dispor de
espaços verdes abertos e
democráticos para seu
lazer. Parques e praças
públicas e gratuitas
deveriam ser parte
inseparável de qualquer
pacote de investimentos
de desenvolvimento
urbano. As cidades feias
que me perdoem, mas
beleza é fundamental!
A reforma das cidades
brasileiras
provavelmente é a maior
frente de investimentos
que podemos ter nos
próximos anos.
Saneamento + habitação +
transportes requerem
altíssimos volumes.
Áreas verdes pedem menos
recursos, mas ainda
assim relevantes porque
muitas desapropriações
seriam necessárias para
a criação de parques e
praças em todas as
regiões da cidade. Os
investimentos em
tecnologia já estão em
curso e talvez nem sejam
tão altos porque têm
sido feitos por meio de
parcerias
público-privadas.
Recente estudo do WRI
estima ser possível
criar dois milhões de
empregos com a
implementação dos
investimentos para
aumentar a resiliência
climática. De onde virão
os restantes 10 milhões
de empregos para atender
aos atuais
desempregados? Se nada
for feito, (não) virão
dos serviços de baixa
qualidade, claro, porque
a indústria não vai
contratar em larga
escala, por razões
sobejamente conhecidas,
e a agricultura emprega
cada vez menos por
unidade de produto.
Por tudo isso creio que
só há uma frente capaz
de criar muitos milhões
de empregos – a
renovação radical das
grandes cidades
brasileiras. O somatório
de investimentos
coordenados e coerentes
de várias naturezas pode
mobilizar centenas de
bilhões de reais,
empregar milhões de
pessoas e, mais
importante do que tudo,
melhorar a qualidade de
vida de dezenas de
milhões de brasileiros.
É o único programa capaz
de gerar aliança
política ampla de muitos
atores. Cidades para
cidadãos. Cidades boas
para todos. Eixo de
desenvolvimento interno
com fortalecimento da
cidadania ampla. Fora
disso, onde encontrar
ocupação digna para
tanta gente? Haja
manicure, motorista e
motoqueiro de
aplicativo... É o que
queremos para o Brasil?
Temos que construir um
sonho inclusivo e
generoso e as cidades
são o lugar por
excelência para isso.
Seus habitantes devem
ser os protagonistas e a
qualidade de vida deve
ser o objetivo último de
todas as políticas
públicas urbanas. Dar a
todos a opção de viver
bem é a aposta mais
inteligente para ampliar
a cidadania e o
crescimento, em um
círculo virtuoso e
redutor das
desigualdades.
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