Por Arthur Koblitz*
Depois do segundo anúncio do presidente do
BNDES, Gustavo Montezano, no último domingo
(29), pode ser reafirmado que as medidas
apresentadas pela atual diretoria do BNDES, até
o momento, são claramente insuficientes e não
estão à altura da crise. A principal crítica às
medidas é simples: deliberadamente a diretoria
não explora o potencial de atuação e formulação
do BNDES.
Tal postura é tão grave quanto à do comando de
um corpo de bombeiros que resolve não pôr em
plena ação homens e veículos diante de uma
cidade incendiada. Sofrimento desnecessário
ocorrerá em função da opção que está sendo feita
e reafirmada.
Apesar da esterilização de centenas de bilhões
de reais nos último cinco anos, pela política
contínua de desmonte da instituição nesse
período, ainda resta algo em torno de R$ 100
bilhões a R$ 150 bilhões que o BNDES tem à
disposição para injetar na economia.
Como o presidente da instituição alardeia que as
medidas anunciadas até aqui envolvem R$ 97
bilhões, aparentemente, afirmar que o esforço
está muito aquém do potencial da instituição
parece injusto e ilógico.
A questão é que as aparências, assim como as
fake news, enganam.
Desses R$ 97 bilhões apenas R$ 7 bilhões
envolvem desembolsos do BNDES: a linha de
capital de giro para pequenas e médias empresas
(R$ 5 bilhões) e a linha para a saúde (R$ 2
bilhões).
Em relação à linha para saúde cabe reconhecer e
louvar um avanço importante.
Era uma das nossas maiores preocupações, e
gerava mesmo perplexidade a falta de qualquer
apresentação de ações na área diretamente sob
estresse da crise, dada a notória experiência de
atuação do BNDES no setor. Chamamos atenção para
essa negligência em entrevistas à imprensa,
antes do primeiro anúncio de medidas e depois,
em artigo publicado pela Folha em que comentamos
o primeiro anúncio de medidas do BNDES.
No primeiro pronunciamento
do presidente, o setor de saúde não chegou nem a
ser citado quando foi prometido que medidas
setoriais seriam anunciadas em breve. Mais do
que isso, como observamos no
artigo anterior,
tivemos a confirmação do presidente de que o
banco foi afastado de uma operação com a Fiocruz
para a produção de kit de teste para o Covid-19,
com o argumento de que a Fiocruz era assunto do
Ministério da Saúde.
Sobre a linha de R$ 5
bilhões para pequenas e médias empresas, como já
destacamos no
artigo anterior,
é importante que não houve criação de um novo
produto. Aumentou-se o limite de crédito que
pode impactar médias empresas e incluem-se
empresas médias de um porte superior.
A linha não conta com a participação coordenada
com a Caixa Econômica, Banco do Brasil e bancos
regionais de desenvolvimento. A excessiva
dependência das ações que envolvem o BNDES do
filtro dos bancos privados pode se revelar um
grande desafio da eficácia das propostas até
agora apresentadas.
As outras frentes de atuação consistem em:
1. R$ 30 bilhões (R$ 11 bilhões de operações
indiretas e 19 de operações diretas) de
suspensão (potencial) de cobrança de serviços da
dívidas das empresas (juros e principal) por 6
meses;
2. R$ 40 bilhões da linha do Tesouro mais
Febraban (o BNDES entra aqui estritamente do
ponto de vista operacional, não há fonte de
financiamento ou assunção de risco);
3. R$ 20 bilhões são recursos que deveriam ser
utilizados pelo BNDES, mas foram transferidos
para o FGTS;
O item número um é menos do que um
refinanciamento. Trata-se de deslocamento no
tempo de obrigações financeiras de empresas que
já possuem crédito com o BNDES. O item número
dois refere-se a uma ação administrativa do
banco. Não envolve nem as fontes de
financiamento, nem assunção de risco por parte
do BNDES.
Sobre o terceiro ponto vale, mais uma vez,
explorar a comparação com a ação de um corpo de
bombeiros num incêndio. Imagine se o corpo de
bombeiros anunciasse que entre suas medidas de
esforços estaria a cessão de pessoal e carros,
por exemplo, para a polícia. Todos se
perguntariam, mas não é um incêndio?
Como não colocar todos os recursos dos bombeiros
a serviço de seu debelamento? O BNDES é o
principal instrumento do governo para agir de
forma contracíclica junto às empresas e
governos. Todos seus recursos deveriam estar
direcionados para que a instituição agisse.
O objetivo aqui não é menoscabar o que já foi
apresentado, medidas que estão envolvendo
esforço de técnicos do banco. A direção é
correta, mas a escala obviamente não é. Não é
apenas no discurso político que o governo parece
ser vítima de fantasias. Nas medidas de política
econômica de combate à crise, como
exemplifica-se a seguir no caso do BNDES, há
ampla evidência de que dogmas turvam a visão dos
tomadores de decisão.
O BNDES é particularmente importante quando um
dos principais vetores da crise é restrição de
crédito. E esse é exatamente o caso da crise
atual. Os bancos privados devem reagir, já há
sinais de que estão reagindo, como o setor
privado reage numa situação de grande incerteza,
correm para a liquidez, fogem do risco associado
ao crédito.
A falta de uma análise desapaixonada do que deu
errado ou não deu tão certo no passado recente
atrapalha o entendimento da questão. O
Ministério da Economia parece preocupado em não
repetir um “excesso” de expansão do BNDES. E
parece querer manter, mesmo na crise, o
compromisso com o projeto do BNDES como um banco
basicamente prestador de serviços.
A ação do banco foi fundamental em 2008/2009,
justamente porque, nessa conjuntura, a grande
restrição que -ameaçava levar a economia para
uma depressão- era a restrição de crédito. Se os
efeitos do BNDES nos anos seguintes não geraram
o mesmo impacto, deve-se ao fato de que os
problemas do crescimento passaram a estar menos
ligados à restrição de crédito e mais à falta de
dinamismo da demanda.
Em situações como essa, o banco pode ser um
grande multiplicador do esforço de demanda, se
atuar junto com um esforço expansionista fiscal
por parte do governo, mas tem menos capacidade
de impulsionar por si mesmo a economia.
A crise atual rapidamente se transformará numa
crise de restrição de crédito.
Por isso a ação do BNDES em aliança com os
demais bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa
Econômica e os bancos de desenvolvimento
regional) deveria formar o eixo de uma ação
coordenada de combate à crise.
Mas isso é exatamente o que não está colocado.
Nas linhas anunciadas prioriza-se a articulação
com os bancos privados. Capital de giro, a
suspensão das operações indiretas e a linha do
Tesouro dependem demasiadamente da ação dos
bancos privados.
Outra condição para que os bancos públicos
possam exercer A sua função é que eles tenham
capacidade de, discricionariamente, fixar taxas
condizentes com a urgência do momento.
Admitir que questões de equilíbrio fiscal tenham
de ser despriorizadas nesse momento deveria
querer dizer também que não deveríamos estar
proibidos para oferecer linhas de crédito a
taxas subsidiadas.
Infelizmente, essa proibição está de pé por
conta de uma camisa de força chamada TLP (taxa
de longo prazo).
Houve grande esforço no Congresso com várias
emendas que procuraram dotar o mecanismo de
formação da taxa de longo prazo do BNDES de
alguma flexibilidade. Infelizmente, a equipe
econômica do governo do ex-presidente Michel
Temer, que continua no poder no segundo escalão
do atual governo, foi irredutível. Precisamos
agora, rapidamente, fazer esse esforço de
correção. Dotar a regra de formação da taxa de
juros do BNDES de flexibilidade. Por dois
caminhos:
1. permitir que um rol maior de custos de
referência (além da NTN-B de 5 anos, poderíamos
incluir a Selic, a LTF, etc.);
2. estipular redutores para o custo de
referência para fins específicos (Pequenas e
médias empresas, infraestrutura, etc.).
Com uma taxa mais flexível e com a coordenação
dos bancos públicos poderíamos enfrentar com
mais sucesso a atual crise, injetando crédito na
economia.
Finalmente, é preciso acabar com o dogma de que
empresas grandes não podem ser apoiadas.
Grandes empresas são conectadas com o resto da
economia em suas cadeias produtivas a pequenas e
médias empresas. Quando as grandes empresas
crescem, elas puxam todos os setores e
segmentos, inclusive as pequenas e medias
empresas. E quando enfrentam perdas abruptas de
receita, as médias e pequenas não ficam
impunes.
A missão do BNDES como financiador da
infraestrutura, inovação, em resumo, tudo que
envolve sua missão primordial de zelar pela
promoção dos setores mais dinâmicos da economia,
deve valer agora na hora de ajudar a
preservá-los.
Em resumo, um pacote à altura do BNDES deveria
envolver um diagnóstico ampliado e mais profundo
da crise. A atual diretoria precisa ser menos
refratária às sugestões dos técnicos. No meu
ponto de vista, uma correção de rumo tornariam
inescapáveis as seguintes medidas:
1. o BNDES precisa priorizar sua atuação em
coordenação com os demais bancos públicos (Banco
do Brasil, Caixa Econômica e Bancos de
desenvolvimento regionais);
2. o Congresso Nacional, nas declarações do
deputado federal Rodrigo Maia, já está
consciente de que o BNDES “está travado demais”.
Para destravar o banco, o Congresso poderia
aprovar as seguintes medidas: a) suspender a
aprovação de medidas que reduzem os repasses do
FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) para o
BNDES, como a PEC Emergencial; b) flexibilizar a
regra de formação da taxa de juros do banco, a
TLP. O risco da manutenção da TLP nos moldes
atuais é o empoçamento do crédito e/ou uma
escalada insustentável do endividamento das
empresas;
3. do mesmo modo deveriam ser interrompidas
novas devoluções dos aportes do Tesouro no BNDES
(devoluções que vêm ocorrendo, diga-se de
passagem, em flagrante violação da Lei de
Responsabilidade Fiscal).Não é suficiente apenas
frear o caminho da insensatez. Deveria se pensar
o contrário nesse momento. Capitalizar o BNDES
como fez o governo alemão com o seu "BNDES" (Kfw).
Permitir que o banco cumprisse o que estão
querendo passar como tarefa para o Banco
Central: emprestar diretamente para empresas.
Ora, isso pode fazer sentido em outro país, no
Brasil já temos uma instituição que tem essa
expertise.
4. finalmente, e o mais importante, porque sem
isso nada acima faz sentido, o BNDES precisa
atuar como instituição de crédito que é e
ampliar o escopo de sua atuação em relação ao
tamanho de empresas e setores que precisam ser
atendidos.
*Economista, presidente da AFBNDES
Texto publicado na
Folha de S. Paulo em 4
de abril de 2020. |