Por Arthur Koblitz*
O BNDES apresentou, no último domingo (22),
medidas para combater a crise provocada pelo
novo coronavírus. Promete-se anunciar, em breve,
medidas adicionais, voltadas para setores
específicos. Há muitas dúvidas sobre as medidas
já anunciadas. A primeira tarefa, nessa
situação, é contribuir para o esclarecimento. Em
seguida, faremos uma apreciação do que foi
proposto.
O pacote anunciado é de um
montante de até R$ 55 bilhões. Ele está dividido
em três partes, que consistem em transferências
do PIS/PASEP para o FGTS; R$ 5 bilhões para
médias, pequenas e grandes empresas (MPME’s);
e R$ 30 bilhões
para refinanciamentos.
Parte dessas medidas já havia sido anunciada
pelo Ministério da Economia. Como foi
reconhecido na apresentação de domingo, esse é o
caso dos R$ 20 bilhões que serão transferidos do
PIS/PASEP para o FGTS. O FGTS não é operado pelo
BNDES, ou seja, estamos falando de recursos que
foram tomados do banco para outros usos. E isso
é apresentado como exemplo de que “o ‘S’ de
social está ficando bem mais presente no banco”.
É feita uma ponte ainda com a venda de R$ 20
bilhões de ações da Petrobras como se a venda
dessas ações tivesse viabilizado a transferência
desses recursos.
A mensagem é clara. O
presidente do BNDES diz que a forma de o banco
contribuir com o social é vender seus ativos ou
se desfazer de seu funding para que o governo
federal possa dar destinos mais “nobres” a esses
recursos. Ou ainda: mais de um terço do pacote
até agora anunciado
pelo
BNDES está
na contribuição que o banco dá ao sair do
caminho para missões mais importantes passarem.
Segundo o Observatório de Política Fiscal, da
FGV/Ibre, na publicação “As políticas que estão
sendo adotadas para o combate ao Covid-19:
experiência internacional e Brasil”, os R$ 5
bilhões para MPME’s também já tinham sido
anunciados pelo Ministério da Economia. Sobre
esse montante prometido há uma sutileza
importante.
Ao contrário do que mencionou o presidente do
BNDES, esse montante não corresponde à
“ampliação do limite de capital de giro” para
MPME’s. Trata-se da previsão de desembolso, de
“capital de giro” para essas empresas.
Acontece que a principal
alteração nesse produto foi a inclusão das
empresas médias de tipo 2, empresas de
faturamento na faixa de R$ 90 até R$ 300
milhões, entre os beneficiários da linha. A
segunda modificação
–
a ampliação do limite de crédito, por empresa,
de R$ 10 para R$ 70 milhões
– também afeta
basicamente essa nova classe de beneficiários e,
em alguma medida, as empresas médias de tipo 1
(empresas com faturamento entre R$ 4,8 a R$ 90
milhões) –
relevante análise colaborativa que ouvi de
Ricardo Ramos (ex-diretor do BNDES) para este
artigo.
Para as micro e pequenas empresas não houve
qualquer modificação nas condições financeiras
oferecidas. Ou seja, o impacto da medida deveria
ser anunciado em termos do desembolso que deve
se esperar das novas beneficiárias, as empresas
médias de tipo 2, necessariamente um valor menor
(R$ 2 bilhões?) do que a previsão de R$ 5
bilhões para todas MPME’s.
Sobre os refinanciamentos, é importante entender
que eles não correspondem a desembolsos do
banco. Trata-se da possibilidade da suspensão,
voluntária e temporária, por seis meses, dos
serviços da dívida de parte das empresas que
tomaram recursos com o BNDES (todos os
empréstimos tomados em linhas que contaram com
equalização do Tesouro estão excluídos). Essa
medida é importante para evitar o inadimplemento
desorganizado das empresas em dificuldade severa
de caixa por conta da crise.
Ao invés de correr esse risco, propõe-se uma
forma de acordo contratual para suspender
temporariamente o pagamento. Importante
registrar também que a medida não contemplou o
alongamento do prazo total dos financiamentos.
Os refinanciamentos estão divididos em R$ 19
bilhões para operações diretas —financiamentos
contratados diretamente com o BNDES, normalmente
envolvendo empresas maiores— e R$ 11 bilhões
para operações indiretas (contratadas por meio
de bancos comerciais).
Na mesma edição do
Observatório de Política Fiscal é feita a
consideração de que as condições financeiras
para as linhas indiretas tendem a não ser
atraentes, uma vez que a Selic tenderá a
despencar e os financiamentos do BNDES são à TLP
(Taxa de Longo Prazo),
que tem como custo de referência a NTN-B de 5
anos, que está crescendo e tende a crescer na
crise.
Outro argumento para a possível inefetividade do
refinanciamento para as linhas indiretas é o
possível desinteresse dos bancos comerciais.
Como destaca o sítio do BNDES, “a autorização
para a suspensão da dívida fica a critério da
instituição financeira onde a operação foi
contratada”. E ainda há questões operacionais
envolvidas como “adequações dos sistemas dessas
instituições financeiras”. Em muitos casos pode
ser que os bancos, dada a incerteza, não aceitem
parar de receber por seis meses das empresas em
dificuldades.
Vamos ao julgamento. Fosse o conjunto da obra os
R$ 55 bilhões, um anúncio completamente novo e
realmente efetivo, ele seria relativamente muito
modesto. Estamos falando de cerca de 0,7% do
PIB. Países como Estados Unidos, Espanha e Reino
Unido estão trabalhando seu esforço total na
casa dos 17% do PIB.
Na Alemanha, um pacote total de 750 bilhões de
euros (19% do PIB alemão de 2019) acaba de ser
anunciado. Exatos 100 bilhões de euros (2,6% do
PIB, quase quatro vezes mais que os R$ 55
bilhões do BNDES) são de repasses para o “BNDES”
alemão, o KfW. E esse apoio alemão não inclui a
intervenção por meio de garantias. Nesse
terreno, o KfW pode chegar a garantir um
montante de 822 bilhões de euros!
Além disso, a participação
do BNDES no esforço de superar a crise estaria
muito aquém de seu papel histórico. O presidente
do BNDES e o ministro da Economia da Alemanha
estão nesse sentido em campos opostos. O
ministro está convencido de que “a crise
provocada pela Covid-19 será, no mínimo,
tão grande quanto à
crise financeira
de 2008”. Já o
presidente do BNDES acredita que não é relevante
comparar as medidas anunciadas hoje com o que o
banco fez em resposta à crise de 2009, quando
houve uma capitalização de mais de R$ 100
bilhões de reais no BNDES.
Sobre os programas setoriais que foram
indicados, a grande e incompreensível ausência é
a área de saúde. Economistas e jornalistas falam
em reconversão de plantas industriais, enquanto
o BNDES não sinaliza a expansão de capacidade de
empresas que já produzem, por exemplo,
respiradores. Nada é anunciado sobre linhas de
financiamento para comercializar os respiradores
produzidos por essas empresas.
Nenhuma palavra sobre
expansão de leitos, quando o banco possui
convênio com instituições filantrópicas que são
responsáveis por 60% dos leitos do SUS. E como
confirmado pelo próprio presidente do BNDES, uma
operação de apoio ao aumento da oferta de kits
de teste do coronavírus foi descartada. Falou-se
de apoio a companhias aéreas, restaurantes e
bares. Mas a crise é de todo setor de comércio
varejista. Lojas de roupas, vendas de automóveis
etc. Com o varejo
fechado, as empresas têxteis, de cerâmicas e de
móveis estão sem pedidos. Todos esses setores
intensivos em mão de obra.
A ação do BNDES, portanto,
pode e precisa ser mais ampla (nota de pé de
página: agradeço
ao economista do BNDES Fernando Puga por essas
observações).
O banco sofre de uma amarra importante: o
inflexível mecanismo da TLP. Reforma longamente
planejada e festejada por economistas ligados ao
sistema financeiro, a TLP desmorona nessa crise
junto com outros aparatos que foram edificados
pelos campeões nacionais da austeridade.
Uma notícia boa no meio de tantas ruins. A crise
chegou antes que os planos do Ministério da
Economia para o BNDES tivessem sido
completamente implementados. Os aportes do
Tesouro não foram todos devolvidos, os repasses
do FAT ainda existem, a carteira da BNDESPar
ainda está de pé. O banco permanece à altura do
desafio dessa crise. Isso torna constrangedoras
as medidas apresentadas pelo banco. O BNDES pode
ter protagonismo, o país precisa disso, mas a
atual gestão dogmática do Ministério da Economia
não pode deixar isso acontecer.
Os argumentos do presidente do BNDES apresentam
a costumeira inconsistência de quem quer agradar
públicos completamente incompatíveis. De um
lado, seus chefes que claramente minimizam a
crise e desprezam o BNDES; de outro, a opinião
pública qualificada que acompanha as ações do
BNDES e que está a par da realidade. Fala ao
mesmo tempo de “momento disruptivo” e da
necessidade de “cautela”.
A combinação coerente deveria juntar disruptivo
com ousadia.
*Economista, presidente da AFBNDES
Texto
publicado na
Folha de S. Paulo em 24 de março de 2020. |